Paragráfos que achei essenciais no texto " Dias de sombra dias de luz"
DIAS DE SOMBRA DIAS DE LUZ
Jurandir Freire Costa
Sem o sonho de que os tempos sombrios passarão, viver serve para quê?
Começo pelas sombras. O Brasil vive uma escalada da violência urbana desorientadora. Quando a lista de atrocidades parecia esgotar-se, aparece mais uma figura do medonho, do horror dos horrores, a morte do menino João Hélio. Será que somos uma aberração coletiva apelidada de nação? Será que somos uma civilização sem amanhã? Talvez sim, talvez não. Seja como for, para evitar o dano mais grave é preciso admitir o evidente: criamos uma sociedade inconseqüente que se vê a braços com o pior efeito da inconseqüência humana: a carnificina monstruosa, na qual crianças matam crianças, sem se dar conta da imoralidade do que estão fazendo.
O assassinato de João Hélio por um adolescente que afirmou “não saber o que significa perder um filho assassinado porque nunca teve filho” ... Mas, sobretudo, mostrou que nunca teve a chance de saber o que é um pai, uma mãe, um filho, enfim, o que é amar e perder um ser amado a quem se deu a vida... A impiedosa engrenagem da miséria triturou sua capacidade de introjetar o sentido ético do que Levinas chamou de “infinita responsabilidade pelo Outro”!
Aí, porém, reside a trágica antinomia da condição humana. Apesar de não ter controle sobre as causas que o levaram a agir como agiu, o garoto é responsável pelo que fez, a menos que o consideremos um puro espectro humanóide, o que seria incomensuravelmente mais desumanizante. Podemos, é claro, conceder-lhe o benefício da ausência de consciência plena do crime cometido; podemos olhar com clemência a dolorosa história de vida que o fez praticar o que praticou, mas não podemos isentá-lo da autoria do seu ato.
Nós, universitários ou acadêmicos, não somos anjos prudentes com uma régua de virtudes à mão, prontos para dirimir, judiciosa e incansavelmente, o que é joio e o que é trigo. Nossa tola vaidade nos faz pensar, muitas vezes, que “os outros”, os incultos ou conservadores, podem tropeçar na própria ignorância e não saber o que dizem ou dizerem “não sei”. Nós, não! Nós somos embaixadores do Iluminismo, do Humanismo ou de qualquer outro “ismo”. Por conseguinte, vir a público falar do que sentimos em momentos de comoção moral e intelectual significa confessar o pecado leigo de lesa-razão! Crime, diz-se, é com a justiça, e fora da justiça não há salvação. Porém, o que chamamos de justiça, entendida como lei ou direito instituídos, não nasce da cabeça de Zeus. Nasce de um sentimento anterior, pré-reflexivo e pré-racional, adquirido mediante experiências psicológico-morais primárias, que ao longo das vidas pessoais e da vida cultural tornam-se familiares. Acontecimentos extraordinários do ponto de vista moral podem, assim, fazer-nos hesitar quanto à propriedade e a natureza do que julgamos justo ou injusto. Nestas situações, o moralmente indecidível pode emergir, posto que a enormidade do fato ocorrido força-nos a oscilar, de modo ambivalente, entre o “impiedoso, frio e impessoal” e o “compassivo, passional ou leniente”. Esse é um dos efeitos mais nocivos da anomia cultural: suportar a dúvida de estar sendo, simultaneamente, injusto com a vítima e com o algoz. No caso de João Hélio, como decidir entre a piedade devida a cada um e a equanimidade devida a todos? O que é mais justo: pedir o endurecimento na punição do responsável pela morte de uma criança inocente brutalmente assassinada ou argumentar, em favor do adolescente assassino, que ele jamais teve condições de entender, por questões psicológico-sociais, que o direito à vida é uma prerrogativa de qualquer ser humano?
Não sou derrotista ou desistente. Há coisas nas quais podemos acreditar porque existem e podem ser feitas. Dou dois exemplos. O primeiro é o da conversa recente entre o ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, e três governadores recém-eleitos. O ex-prefeito foi direto ao ponto: “polícia sem cidadania e sem reforma urbana é o mesmo que nada”. E, prosseguiu, “quando era prefeito, ao invés de gastar US$ 2,2 bilhões em auto-estradas que beneficiariam 15 %o da população de Bogotá, decidi usar o dinheiro em transporte público, e, com o que sobrou, investir em escolas de qualidade, bibliotecas, parques, ciclovias e melhorias das calçadas. Nós demos a cidade aos pobres que não tinham como usá-la”.
Elite, como bem disse a ministra Marina Silva, não é sinônimo de oligarquia vampiresca. Elite são os melhores; os que pensam e agem com a consciência da responsabilidade pública que têm, em função do poder social e da autoridade moral que souberam conquistar no legítimo exercício de seus talentos e competências. Encontramos, neste ponto, o segundo exemplo, que nos foi dado a ver pelo cineasta João Jardim, em seu belo documentário Pro dia nascer feliz. O filme trata da escolarização de adolescentes brasileiros de pequenas cidades rurais do Nordeste, da periferia das grandes cidades do Sudeste e da alta classe média paulistana. O resultado é impactante. Como seria previsível, presenciamos a trajetória de garotos que terminaram cometendo crimes e foram parar nos aviltantes centros de detenção de menores. O mais importante, contudo, é a surpresa de testemunhar o vigor do desejo de auto-realização e de justiça que anima tantos jovens brasileiros que ainda não sucumbiram á lavagem cerebral do “este país não presta”. Da humilde garota pernambucana que supera obstáculos gigantescos para concretizar suas aspirações literárias ao depoimento de duas garotas da escola paulistana, o que vemos é o desenho humano do que deveria ser uma verdadeira elite. O caso das garotas privilegiadas, em especial, é ainda mais eloqüente, pois contraria em tudo o clichê de alienação e insensibilidade colado aos jovens desse grupo social. Em uma cena, duas dessas garotas conversam, e, ao se referirem à injustiça social que lhes deu tudo, privando a maioria de quase tudo, uma delas diz: “São dois mundos separados”. Ao que a outra, com uma acuidade intelectual cirúrgica, responde: “O pior é que não são dois mundos, é um mundo só”.
Eis uma das chaves da saída: um só mundo, um só povo. Com essa simples consciência, esses brasileirinhos decentes e encantadores mostram que possuem o senso de pertencimento a uma mesma comunidade de tradições, e, portanto, são capazes de reconhecer o direito dos demais ao mesmo respeito e oportunidade que lhes foram dados. No mundo deles - se permitirmos - mortes de inocentes como João Hélio serão lembradas, apenas, como dias de sombras que antecedem os dias de luz. No mundo deles - se permitirmos - a referência do pronome “nós”, na sensível expressão de Rorty, será estendida a todos os brasileiros e a todos aqueles que elegerem nosso país como um bom lugar para se viver. Sonho de bobo alegre, dirão os cínicos. Talvez. Mas - plagiando a rústica Macabéia de Clarice Lispector -, sem esse sonho, viver serve pra quê?
Nunca imites ninguém. Que a tua produção seja como um novo fenómeno da natureza. Leonardo da Vinci
quinta-feira, maio 28, 2009
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